Diante de fila de até cinco anos na rede pública do Rio, pessoas trans bancam tratamento hormonal por conta própria e muitas vezes sem assistência médica.

Por: Anna Bustamante e Gabriela Veloso

O alarme do celular toca às sete e meia da manhã. Francis da Rosa, de 21 anos, acorda e, com um estranho entusiasmo para quem odeia acordar cedo, pula da beliche que divide com uma colega da república onde mora. Pronto para sair de casa e rumar para o posto de saúde, coloca dentro da bolsa uma caixa de Nebido, hormônio masculino comprado por 400 reais na farmácia. “Ser trans é caro, ainda mais no Brasil”, desabafa. Ele repete esse ritual a cada dois meses, que é o intervalo entre as aplicações. Francis é um homem trans, estudante de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mudou-se neste ano para a capital carioca. Sem conseguir acesso ao tratamento hormonal na rede pública, está se virando para pagar, em uma clínica particular, por um procedimento que é, na verdade, um direito estabelecido pela resolução de Nº 2.265, de 20 de setembro de 2019. Recém-chegado do Vale da Ribeira, em São Paulo, o jovem mora com mais nove estudantes em uma república em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. Além de Francis, outras 770 pessoas ainda aguardam na fila de espera para ter acesso à primeira consulta com um endocrinologista – para dar os primeiros passos em tratamentos de hormonização – no Sistema Único de Saúde (SUS) no estado. Os dados são oficiais do painel de saúde do Rio de Janeiro e foram monitorados entre fevereiro de 2021 e agosto de 2023.

Superintendência Estadual de Regulação – Painel Ambulatório

Na cidade do Rio de Janeiro, para dar início ao processo de hormonioterapia, a pessoa trans deve buscar primeiro o posto de saúde ou a Clínica da Família mais perto de sua casa. Durante o atendimento no local, é necessário apresentar por escrito uma autodeclaração de que é uma pessoa trans e busca o atendimento específico, para ser incluída no Sistema Estadual de Regulação (SER). Feito isso, os pacientes têm que esperar o próximo contato – que pode demorar cinco anos. “Caso não seja possível seguir na Unidade Básica de Saúde, a unidade irá encaminhar para um centro especializado. Além disso, profissionais da endocrinologia, ginecologia, urologia e medicina da família e comunidade podem assistir essas pessoas”, explicou à Agência AIDS o endocrinologista Magnus Dias da Silva, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo (SBEM-SP). 

No estado do Rio de Janeiro, o único centro público de referência no tratamento de hormonioterapia de transgêneros, não binários e travestis é o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE), no centro da cidade. A instituição tem um Ambulatório Multiprofissional de Identidade de Gênero (AMIG) para atender aos pacientes.

Em 2021, os tratamentos hormonais para pessoas trans consumiram 332 mil reais, o equivalente a 0,0002% do orçamento do Ministério da Saúde, segundo os dados do DataSUS. Ainda assim, num estado como o Rio de Janeiro, o estoque de medicamentos hormonais está sempre baixo, por causa do desinteresse das empresas farmacêuticas no ramo. A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES – RJ) informa que no dia 13 de maio de 2022 foi aberta uma licitação para a compra dos hormônios, mas o processo foi um fracasso pela ausência de propostas. Até final do mês de maio não houve nova licitação.

Frustrados com a falta de acesso ao sistema público, transgêneros buscam clínicas privadas para o tratamento hormonal, mesmo sem ter condições. Na rede particular, meia hora de consulta com um endocrinologista pode variar entre 150 reais e 400 reais. Depois vem o custo dos medicamentos: uma caixa de um dos hormônios usados no tratamento varia de 50 reais a 400 reais:  “Quando eu tomava de 21 em 21 dias, era uns 50 reais a caixa de Deposteron, que vem com três ampolas. O Nebido, que é de dois em dois meses, custa em média 400 reais a caixa”, explica Francis. 

Enquanto não consegue o tratamento hormonal pela rede pública, Francis tem que decidir qual conta, além do tratamento, vai conseguir pagar. “Se eu pudesse não gastar com isso, poderia me alimentar melhor aqui e comprar coisas básicas. Mas meus hormônios são questões básicas também”, conta. A hormonização, ou hormonioterapia, é um desejo de muitas pessoas em transição de gênero, mas oferece uma série de riscos – ainda que, quando realizada com acompanhamento médico especializado e em doses recomendadas,  seja relativamente segura. Para dar início ao tratamento o paciente deve ter no mínimo 18 anos e um ano de acompanhamento médico, segundo a resolução Nº 2.265, de 20 de setembro de 2019 – Orientações que servem tanto para médicos da rede pública, quanto para os da rede privada. 

Diante da falta de assistência na rede pública e sem informação exata sobre a atuação desses hormônios, jovens que não aguentam mais esperar se arriscam a realizar o tratamento sem prescrição médica. É o caso de uma aluna do professor Diego Mattos, que leciona Sociologia para estudantes do ensino médio. Segundo ele, a jovem tem 17 anos e está usando os hormônios por conta própria: “Ela me contou que tinha injetado estrogênio por indicação de uma outra colega. Como tinha uma boa relação com ela, alertei que esse tipo de procedimento sem acompanhamento tem seus riscos”, relata. Dentre os riscos mais graves estão: trombose, embolia pulmonar, alterações da função hepática e policitemia. Sem a devida orientação profissional, o paciente pode não atingir as modificações físicas esperadas e ainda colocar sua vida em perigo. 

A hormonização é um tratamento complexo de se compreender, mas basicamente existem três formas de aplicar os hormônios no corpo do paciente: via oral (comprimido), por injeções e por adesivos hormonais que proporcionam a liberação de forma progressiva na corrente sanguínea. Para pessoas acima de 40 anos, faixa etária na qual os riscos são maiores, é indicado o uso dos adesivos, porque o corpo consegue tolerar melhor. 

Além do tratamento hormonal, as cirurgias de redesignação de gênero também são muito desejadas pela comunidade trans: “Não faço ideia de quando vou poder pagar isso. Se eu conseguisse a hormonioterapia pelo SUS, eu poderia começar a juntar dinheiro para a cirurgia”, conta Francis, que deseja fazer a cirurgia de mastectomia – remoção dos seios. Ele explica também que nem todo transgênero sente vontade de realizar alguma cirurgia desse tipo, alguns ficam apenas na hormonização e vice-versa. 

As cirurgias de redesignação de gênero, como:  mastectomia (retirada de mamas), ooforectomia (retirada de um ou dois ovários) e orquiectomia (retirada de um ou mais testículos), podem ser realizadas a partir dos 21 anos, com ao menos dois anos de acompanhamento médico prévio, sem a obrigação do tratamento hormonal. Porém, não é recomendado fazer os procedimentos cirúrgicos sem a hormonização. Caso a operação já tenha sido realizada e o tratamento tenha sido iniciado posteriormente, este não deve ser interrompido, como explica a endocrinologista Letícia de Filippo: “Há risco de osteoporose causada pela ausência, ou mesmo pela subdose, dos hormônios sexuais”. 

Mesmo sem a cirurgia, a interrupção do tratamento com hormônios pode ser traumático para o jovem que sonha em se reconhecer no próprio corpo. “Pode até parecer bobagem, mas, agora, que consegui ter dinheiro para injetar o Nebido, meus pelos da perna e do queixo crescem mais grossos.”, conta Francis, com um ar de vitória e um sorriso no rosto. 

Homem transexual branco brasileiro de vinte e um anos que faz tratamento de hormonoterapia no momento
Francis da Rosa, 21 anos: “Ser trans no Brasil é caro”

Em todo o Brasil, os únicos hospitais que podem realizar cirurgias de redesignação pelo SUS se concentram em cinco estados: Rio Grande do Sul, Goiás, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo com o Ministério da Saúde, apenas três unidades fazem acompanhamento preventivo para a cirurgia, com foco em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos.  

A mesma cirurgia que Francis da Rosa aguarda ansiosamente para fazer, mas que não tem condições financeiras para bancar, foi realizada pelo professor de Educação Física Noah Kyôn, de 30 anos, em 2019. Na época, havia aproximadamente 3.200 pessoas aguardando a cirurgia de mastectomia no estado do Rio de Janeiro, de acordo com dados do comitê estadual de saúde LGBT. Como também não tinha expectativa de apressar a fila da rede pública nem recursos para financiar o procedimento, Noah arrecadou o dinheiro por uma vaquinha virtual em suas redes sociais. Arrecadou cerca de 1800 reais e bancou seu sonho: “Minha mãe me abraçou naquela semana e falou que eu estava me tornando um homem tão bonito, isso não tem preço”, conta emocionado, no vídeo que publicou em sua rede social.

Homem transexual chamado Noah Kyon, dois meses após sua cirurgia de mastectomia
Noah Kyôn, 2 meses depois da mastectomia. (Reprodução instagram)

 Reprodução: Noah após realizar o procedimento de mastectomia

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Anna Bustamante: jornalista interessada nas pautas da área da Saúde.

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Gabriela Veloso: jornalista com ascendente em relações internacionais